ENSINO DE ARTES
Professor: Paulo Cezar
"CULTURA"
Darcy Ribeiro
Além
dos seres vivos e da matéria cósmica, existem também coisas culturais,
muitíssimo mais complicadas. Chama-se cultura tudo o que é feito pelos homens,
ou resulta do trabalho deles e de seus pensamentos. Por exemplo, uma cadeira
está na cara que é cultural porque foi feita por alguém. Mesmo o banquinho mais
vagabundo, que mal se põe em pé, é uma coisa cultural. É cultura, também,
porque feita pelos homens, uma galinha. Sem a intervenção humana, que criou os
bichos domésticos, as galinhas, as vacas, os porcos, os cabritos, as cabras,
não existiriam. Só haveria animais selvagens.
A
minhoca criada para produzir humo é cultural, eu compreendo. Mas a lombriga que
você tem na barriga é apenas um ser biológico. Ou será ela também um ser
cultural? Cultural não é, porque ninguém cria lombrigas. Elas é que se criam e
se reproduzem nas suas tripas.
Uma
casa qualquer, ainda que material, é claramente um produto cultural, porque é
feita pelos homens. A mesma coisa pode-se dizer de um prato de sopa, de um
picolé ou de um diário. Mas estas são coisas de cultura material, que se pode
ver, medir, pesar.
Há,
também, para complicar, as coisas da cultura imaterial, impropriamente chamadas
de espiritual - muitíssimo mais complicadas. A fala, por exemplo, que se revela
quando a gente conversa, e que existe independentemente de qualquer boca
falante, é criação cultural. Aliás, a mais importante. Sem a fala, os homens
seriam uns macacos, porque não poderiam se entender uns com os outros, para
acumular conhecimentos e mudar o mundo como temos mudado.
A
fala está aí, onde existe gente, para qualquer um aprender. Aprende-se,
geralmente, a da mãe. Se ela é uma índia, aprende-se a falar a fala dos índios,
dos xavantes, por exemplo. Se ela é uma carioca, professora, moradora da
Tijuca, a gente aprende aquele português lá dos tijucanos. Mas se você trocar a
filhinha da índia pela filha da professora, e criar, bem ali na praça Saens
Peña, ela vai crescer como uma menina qualquer, tijucana, dali mesmo. E
vice-versa, o mesmo ocorre se a filha da professora for levada para a tribo
xavante: ela vai crescer lá, como uma xavantinha perfeita - falando a língua
dos xavantes e xavanteando muito bem, sem nem saber que há tijucanos.
Além
da fala, temos as crenças, as artes, que são criações culturais, porque
inventadas pelos homens e transmitidas uns aos outros através de gerações. Elas
se tornam visíveis, se manifestam, através de criações artísticas, ou de ritos
e práticas - o batizado, o casamento, a missa -, em que a gente vê os conceitos
e as idéias religiosas ou artísticas se realizarem. Essa separação de coisas
cósmicas, coisas vivas, coisas culturais, ajuda a gente de alguma forma? Sei
não. Se não ajuda, diverte. É melhor que decorar um dicionário, ou aprender
datas. Você não acha?
Trecho do livro:
"Noções de Coisas". São Paulo, FTD, 1995